Às vezes, o que assusta não é a existência de pessoas cruéis, mas o quanto gente comum pode atravessar a linha tênue da maldade quando deixa de pensar. Hannah Arendt falava disso com uma clareza desconfortável “o mal não precisa de monstros para nascer”. E isso não absolve ninguém. Apenas mostra que a recusa de refletir, esse gesto de agir no automático, aumenta a responsabilidade de quem escolhe não enxergar o outro. No caso que abalou Paço do Lumiar, não houve força misteriosa arrastando ninguém. Houve decisões tomadas ali, no calor da madrugada, suficientes para transformar ódio em brutalidade e um jovem indefeso em alvo de violência mortal.
O linchamento de Jerder Pereira da Cruz, ocorrido na madrugada de 28 de outubro de 2024 no bairro Novo Horizonte, continua a repercutir pela brutalidade do crime e pela absoluta falta de proteção institucional. um homem perdeu a vida de forma que ainda hoje reverbera como um espelho desconfortável da nossa sociedade. Jerder sofreu um surto psicótico em sua casa no bairro Novo Horizonte. Em meio à desorientação, chegou a arremessar um tijolo contra uma residência e acabou entrando em uma igreja local. A esposa, alarmada, tentou pedir ajuda às autoridades, mas ouviu que não seria um “caso de polícia” e foi orientada a acionar o SAMU, que, no entanto, não chegou a tempo. Sem socorro eficaz, a situação rapidamente saiu do controle com “justiceiros” partindo para a violência coletiva. Em poucos minutos, moradores cercaram, agrediram e espancaram Jerder até que ele ficasse gravemente ferido. Levado a um hospital, não resistiu aos ferimentos e morreu pouco depois.
Mais de um ano depois, a Polícia Civil concluiu o inquérito que aponta quatro pessoas diretamente envolvidas nas agressões, confirmando que a morte não foi simplesmente um acidente, mas um homicídio resultado de uma ação coletiva. As provas reunidas foram remetidas ao Ministério Público, que agora decide se formaliza denúncia e pede que os suspeitos sejam transformados em réus pelo crime de homicídio. Apesar disso, até agora nenhum dos quatro foi preso, e seguem em liberdade enquanto suas vidas “seguem normalmente”, como relataram vizinhos e conhecidos.
Enquanto a família aguarda justiça e o processo segue arrastado, a memória de Jerder continua a cutucar o leitor com perguntas que não se calam:
- Em que momento a ausência de pensamento crítico vira cumplicidade com a violência?
- Como impedir que episódios assim se repitam numa sociedade que insiste em normalizar o que deveria chocar?
- E, sobretudo, até quando os responsáveis pela morte de um homem indefeso continuarão vivendo como se nada tivessem arrancado de uma família inteira?
São perguntas duras, tão concretas quanto a própria ausência de Jerder
Ele deixou três filhos, e a mais nova nasceu quatro meses depois do crime, sem nunca ter podido conhecer o pai.
LEIA MAIS
• Paço do Lumiar: Inquérito identifica quatro envolvidos no linchamento que matou Jerder Pereira
• Morto duas vezes: Estado ignora assassinato de homem esquizofrênico em Paço do Lumiar
