O Eco das Arquibancadas Silenciadas: entre o adeus e o renascimento do Sampaio Corrêa

Por Prof. Dr. Raimundo Castro

Há clubes que se confundem com a vida de um povo. Não são apenas entidades esportivas, mas espelhos da história, pulsação da memória coletiva, territórios de pertencimento. O Sampaio Corrêa Futebol Clube é um desses. Nascido da vibração popular, tornou-se em mais de um século muito mais do que camisa e escudo: tornou-se voz de resistência, símbolo cultural, patrimônio imaterial do Maranhão e resistência de um Nordeste periférico. Mas há momentos em que símbolos são sequestrados, vozes são silenciadas e patrimônios são tratados como mercadoria em leilão. E é justamente esse o drama que se desenrola diante de nossos olhos.

O clube que nasceu das ruas hoje é governado por atas frias, estatutos manipulados e gabinetes herméticos. O time que deveria ser a síntese de uma paixão plural tornou-se monólogo de um dirigente que insiste em confundir o coletivo com o próprio ego. O que se perpetua contra o Sampaio Corrêa não é apenas má gestão: é a tentativa de enterrar, sob camadas de silêncio e opacidade, a própria essência do que significa um clube popular.

A alienação do Centro de Treinamento José Carlos Macieira talvez seja o capítulo mais cruel desta novela. Não se trata apenas da perda de um bem físico — muros, salas, dormitórios, campos. Trata-se da dilapidação de um símbolo. Onde antes se formavam atletas, hoje se ergue o vazio da especulação imobiliária. Onde havia suor, disciplina e sonho, restam escombros e silêncio.

O mais grave, contudo, não é o destino do terreno, mas o modo como se operou a transação. Documentos apontam que o presidente do clube atuou como procurador do vendedor, e não como defensor da entidade que deveria proteger. Um gesto que, por si só, afronta qualquer lógica mínima de lealdade institucional. Como confiar em quem ocupa simultaneamente os dois lados da mesa? Como acreditar que os interesses do clube foram preservados, quando nunca foram apresentadas escritura pública atas de assembleia, e não há prestação de contas?

Em 2022, a própria diretoria assinou um Termo de Ajustamento de Conduta comprometendo-se a pagar R$ 200 mil ao suposto “dono” do terreno. Pagamento por quê? Por um espaço que deveria sempre ter sido do clube? O silêncio das respostas é mais eloquente que qualquer justificativa: o patrimônio do Sampaio Corrêa foi tratado como mercadoria de balcão, negociado nas sombras, sem consulta, sem transparência, sem legitimidade.

Se a venda do CT expõe o ápice da dilapidação, o estatuto do clube revela o alicerce de um regime autoritário. O que deveria ser a constituição democrática da entidade converteu-se em muralha que blinda o poder e expulsa a participação. O Artigo 31, com seus 25 incisos, confere ao presidente poderes quase imperiais: administrar, contratar, punir, alienar bens, presidir assembleias, aprovar chapas, arbitrar eleições e até reconsiderar os próprios atos. Já o Artigo 5º, §1º, permite que o presidente aceite ou recuse sócios plenos à sua vontade, controlando quem pode ou não votar. Democracia transformada em ficção.

Essa arquitetura jurídica não é acidente. É desenho meticuloso para perpetuar um homem no poder e excluir qualquer oposição. A cada reforma estatutária, ampliaram-se as prerrogativas da presidência, enfraqueceram-se os mecanismos de controle e esvaziaram-se as assembleias. O torcedor — verdadeiro dono do clube — tornou-se figurante. Pode aplaudir, nunca decidir. Pode gritar na arquibancada, mas não ser ouvido no conselho.

Transparência é a alma de qualquer instituição que se pretenda pública em sua função social. No Sampaio Corrêa, porém, a transparência foi assassinada em nome do sigilo conveniente. Não há relatórios financeiros auditados, não há contratos publicados, não há prestação de contas. A cada questionamento, uma narrativa pronta. A cada denúncia, um silêncio calculado. O destino dos milhões recebidos pela venda do CT permanece uma incógnita. Onde estão os recursos? Que projetos foram financiados? Que contas foram quitadas? Ninguém sabe, ninguém explica. E, enquanto isso, o clube acumula rebaixamentos, coleciona fracassos e afunda em desconfiança.

A crítica que emerge dos documentos entregues ao Ministério Público é contundente: o Sampaio Corrêa deixou de ser um clube democrático e tornou-se feudo pessoal. Uma entidade cultural, que deveria refletir a coletividade, foi capturada por um projeto personalista, autoritário e opaco. O Estatuto do Torcedor, a Lei Pelé, a Constituição — todos exigem participação, probidade, transparência. Nada disso encontra eco na prática do clube. Ali, a lei é o humor de quem preside. O direito à crítica é tratado como rebeldia, e a exigência de prestação de contas é vista como afronta. Mas não há maior afronta do que arruinar um patrimônio coletivo para satisfazer interesses privados.

A denúncia protocolada no Ministério Público não é mero gesto de inconformismo. É clamor de quem entende que a preservação do Sampaio Corrêa ultrapassa o futebol: toca o patrimônio cultural do Maranhão. Os artigos 215 e 216 da Constituição Federal são claros: cabe ao Estado proteger bens de relevância cultural, sejam eles públicos ou privados. E o Sampaio, com mais de um século de história, é justamente isso — um bem imaterial e afetivo da memória maranhense.

Por isso, a representação pede mais que investigação. Pede afastamento cautelar do presidente, nomeação de interventor judicial e convocação de novas eleições. Pede auditoria ampla, quebra de sigilos bancário e fiscal, responsabilização civil e criminal dos gestores. Não é vingança: é justiça.

Não é a primeira vez que a Justiça maranhense se depara com esse dilema. Em agosto de 2025, a Vara de Interesses Difusos e Coletivos afastou toda a diretoria da Federação Maranhense de Futebol e nomeou interventora com poderes para auditar contas e convocar novas eleições. O precedente é recente, contundente e aplicável. Se a Justiça reconheceu a gravidade de práticas semelhantes na FMF, por que não reconhecerá no caso do Sampaio Corrêa? O risco é idêntico: dilapidação patrimonial, opacidade administrativa e sufocamento democrático. O que se pede não é favor, é coerência.

Mas se a denúncia jurídica é necessária, a mobilização popular é imprescindível. Porque nenhum estatuto manipulado, nenhuma decisão de gabinete, nenhuma cortina de fumaça pode calar a arquibancada. A torcida, que tentou-se transformar em ornamento, renasceu como protagonista. Organizada, ruidosa, vigilante.

É a torcida que pressiona o Ministério Público. É ela que leva denúncias à imprensa. É ela que exige auditoria, eleições, reforma estatutária. É ela que lembra, todos os dias, que o clube não pertence a gabinetes, mas ao povo. O clamor que ecoa das arquibancadas é simples e poderoso: o Sampaio Corrêa é nosso. E nenhum feudo, por mais blindado que seja, resistirá à força da coletividade.

Não basta afastar dirigentes. É preciso refundar o clube em bases democráticas. Reformar o estatuto, devolver poder às assembleias, garantir candidaturas livres, assegurar auditoria independente, instituir portal de transparência. Tudo isso já foi feito em outros clubes brasileiros, que, ao democratizarem sua governança, fortaleceram-se institucional e esportivamente. O Sampaio Corrêa pode — e deve — trilhar o mesmo caminho. Não há dignidade em estatuto que exclui. Não há futuro em diretoria que se eterniza. Não há vitória esportiva quando a derrota moral já se instalou nos bastidores.

Esta não é apenas a crônica de uma denúncia. É a narrativa de um grito que se recusa a ser calado. O grito de uma torcida que entende que paixão sem participação é farsa, e que silêncio diante da pilhagem é cumplicidade. O Sampaio Corrêa chegou a uma encruzilhada. Ou segue como feudo personalista, condenado a morrer sangrando aos poucos, ou se reinventa como clube democrático, devolvido ao seu verdadeiro dono: o povo.

A escolha, no entanto, não cabe a um homem. Cabe à coletividade, à Justiça, ao Ministério Público, à torcida que sustenta esse clube há mais de cem anos. Porque o que está em jogo não é apenas um time. É a memória de um Estado, é a identidade de um povo, é a dignidade de uma paixão. E essa, ninguém tem o direito de vender.

Devolvam nosso Sampaio Corrêa!

SOBRE O AUTOR 

Prof. Dr. Raimundo Castro

Professor Titular do Departamento de Matemática do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Maranhão (IFMA), Campus São Luís – Monte Castelo; Professor Permanente dos programas de pós-graduação stricto sensu, Mestrado Profissional em Educação Profissional e Tecnológica (ProfEPT/IFMA) e do Doutorado em Ensino da Rede Nordeste de Ensino (RENOEN), vinculado à Universidade Estadual do Maranhão (UEMA); Vice-Diretor da Sociedade Brasileira de Educação Matemática, Regional Maranhão (SBEM/MA), membro da Rede Ibero-Americana de Pesquisadores e Acadêmicos (REDE IPA), da Rede Latino-Americana de Etnomatemática (RELAET) e colaborador da Academia Maranhense de Ciências (AMC). Torcedor apaixonado do Sampaio Corrêa Futebol Clube.

Da Redação

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