Na manhã deste domingo, 29 de junho, São Luís assistiu – mais uma vez – à repetição de uma tragédia que parece se infiltrar nos becos da cidade como se fosse parte de sua rotina. Afrânio, jovem e conhecido morador do Maiobão, envolveu-se em um acidente de trânsito no bairro da Forquilha. Segundo os relatos, teria tentado deixar o local, talvez assustado, talvez confuso, talvez culpado. Mas não teve tempo para o arrependimento, nem chance para se explicar. Antes que a justiça pudesse agir, ele foi brutalmente linchado por populares. Morreria poucas horas depois, vítima de um possível traumatismo craniano, devido as diversas capacetadas de “justiceiros de plantão”. Três dias antes, havia se tornado pai pela segunda vez.
Diante dessa tragédia, nos perguntamos: quando foi que nos acostumamos a punir com as próprias mãos? Que tipo de moral nos permite transformar o erro de um jovem em sentença de morte? Hannah Arendt, ao escrever sobre a banalidade do mal, alertava para o perigo de agir sem pensar. É o que se vê em episódios como esse, quando a multidão, movida por um impulso coletivo de fúria, anula o indivíduo e legitima o linchamento como justiça.
René Girard diria que Afrânio tornou-se um bode expiatório. Não pagou apenas pelo acidente, mas por toda a frustração de uma cidade adoecida, cansada de impunidades, mas incapaz de distinguir entre justiça e vingança. Nietzsche já havia nos prevenido contra o “rebanho moralista” que não deseja verdadeiramente justiça, mas apenas um espetáculo de punição. E foi isso que se viu: a encenação de um suplício público, à margem da lei, onde a multidão se transforma em carrasco e juiz.
Afrânio errou. Mas errou como qualquer humano pode errar – como muitos erram todos os dias. A diferença é que ele foi capturado por uma fúria coletiva que decidiu que ele não valia mais viver. Deixou de ser cidadão e passou a ser corpo. Seu erro virou sentença. Sua morte, um espetáculo para os olhos de bárbaros.
O mais perverso é que, ao agirem assim, os linchadores também cometeram um crime. Mas não serão perseguidos com o mesmo ardor. Foucault nos diria que a punição precisa de corpos para afirmar o poder. E o corpo de Afrânio foi utilizado exatamente para isso: para que a sociedade se sentisse momentaneamente “protetora da ordem”, mesmo que, no fundo, tenha reafirmado a barbárie.
Talvez seja hora de se perguntar o que estamos ensinando — e o que estamos permitindo. Porque se o erro não cabe mais no mundo, também não caberá a humanidade.
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