Há momentos na história em que o véu das aparências se rasga, revelando as entranhas de um poder disposto a devorar a própria democracia que o gerou. O depoimento do tenente-coronel Mauro Cid, nesta segunda-feira (9), diante do Supremo Tribunal Federal, não foi apenas uma peça jurídica e sim um documento filosófico sobre o colapso moral de um projeto político que flertou com o abismo.
Segundo Cid, Jair Bolsonaro não apenas tomou conhecimento da famigerada minuta do golpe, como a leu, sugeriu alterações e decidiu que o ministro Alexandre de Moraes, deveria permanecer como alvo de prisão. A minuta, dividida entre “considerandos” e ordens de exceção, revelava um roteiro de usurpação do poder: estado de sítio, prisões arbitrárias, anulação das eleições e a criação de um conselho eleitoral à margem da legalidade. Era um texto redigido sob a lógica do autoritarismo clássico, onde o direito é moldado à vontade do soberano.
Bolsonaro, como uma espécie de aprendiz de tirano, não quis o caos absoluto, mas um caos seletivo. Cortou os excessos que poderiam comprometer a imagem, mas manteve o núcleo do gesto autoritário: prender Moraes. Um gesto simbólico e cruel, pois no mundo do poder, mais que palavras, os alvos dizem tudo sobre os medos e os desejos de quem governa.
O depoimento de Cid revela, em essência, um plano de desconstrução da democracia por dentro. O ex-presidente pressionou o Ministério da Defesa por um relatório enviesado contra as urnas, articulou com generais, financiou acampamentos, mandou monitorar adversários e, como um estrategista do ressentimento, preparava o terreno para a ruptura.
Mas como nos ensinou Hannah Arendt, o mal político não precisa ser monstruoso para ser destrutivo; ele pode ser banal, burocrático, travestido de normalidade. Bolsonaro, com sua caneta e seus generais, operava não como um visionário, mas como alguém que se recusava a aceitar a derrota e, ao fazê-lo, desceu aos porões do golpismo com a naturalidade de quem acredita que a vontade própria está acima da Constituição.